"A União de Temperança das Mulheres Cristãs é uma organização com cujos esforços para disseminação dos princípios de temperança, podemos unir-nos de boa vontade. Foi-me mostrado que não nos devemos manter afastados delas, mas, conquanto não deva haver sacrifício de princípios de nossa parte, devemos o quanto possível unir-nos com elas no trabalho pró-reforma de temperança. [...] Devemos colaborar com elas quando pudermos, e podemos certamente fazê-lo na questão de fechar inteiramente os bares". — Ellen G. White, Conselhos Sobre Saúde, 436, 437 (ênfases acrescentadas).
Esse é um dos vários textos em que Ellen G. White, cofundadora e uma dos líderes da Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD), incentiva a cooperação dos adventistas, em especial as mulheres, com a União de Temperança da Mulher Cristã (Woman's Christian Temperance Union - WCTU).
Certamente causará surpresa a muitos o fato de que a WCTU foi uma das maiores organizações femininas dos EUA e do mundo em sua época (5), e que seja considerada por alguns autores como uma importante contribuinte do movimento feminista (Meira, 2017). Se essa ideia é alvo de disputa, certamente não o será o fato de que uma de suas mais influentes presidentes foi reconhecida como uma notória feminista (Epstein, 1981), e isso à mesma época em que Ellen White orientou a cooperação da IASD com esse movimento.
Neste artigo será discorrido, em breves linhas, a história da WCTU, as ideias que defendia, a ligação e a contribuição dessa organização com o feminismo e os limites para conclusões sobre esse fato. Mais ainda, o objetivo desse artigo é contribuir na diminuição dos preconceitos contra ideias e segmentos cristãos considerados ideologicamente enviesados, e no reconhecimento de o quão importante foi a participação das igrejas cristãs protestantes norte-americanas na busca pelos direitos das mulheres.
O que foi a WCTU
Antes de prosseguir com esta análise, é útil e mesmo necessário entender o que foi a WCTU nos tempos de Ellen White. Essa organização era um movimento social feminino, fundado em Cleveland - Ohio, em 1874, como consecução de uma série de protestos de mulheres a favor da temperança, chamado de "Cruzada das Mulheres"(1). O avanço da indústria do álcool nos EUA, o aumento do poder econômico dessas grandes corporações e a sua consequente influência política, bem como a percepção geral de mulheres cristãs a respeito de uma decadência moral como resultado disso, levou a tais manifestações.
A primeira presidenta desse movimento foi Annie Wittenmyer, que ocupou a posição entre 1874 e 1879. O objetivo dessa organização, à época de sua fundação, era "salvar" os Estados Unidos dos efeitos devastadores do álcool e das drogas, não apenas nos aspectos da saúde, mas também nos aspectos sociais, dadas as mazelas que eram, frequentemente dos púlpitos, atribuídas ao uso dessas drogas, tais como a pobreza e a violência doméstica.
Contudo, não muito tempo depois de sua fundação e entre as próprias agremiadas, surgiram apelos para que a WCTU advogasse outras causas de interesse das mulheres americanas, notadamente o direito ao voto feminino. Com o aumento do apoio à essa ampliação de objetivos, houve uma certa divisão no movimento. Por esse motivo, Wittenmyer, que era contrária ao embandeiramento de questões políticas (Epstein, 1981), deixou a presidência da WCTU, que foi então ocupada por Frances Willard, uma expoente defensora do "sufrágio das mulheres" ("women's suffrage", expressão comum da época que representava o direito ao voto feminino).
É necessário esclarecer que muitas mulheres consideravam que a causa da Temperança, que gravitava em torno da proibição do álcool, só avançaria no sentido de se obter uma legislação favorável às suas propostas se as mulheres participassem ativamente na política americana.
A WCTU sob a Presidência de Frances Willard
Frances Willard liderou a WCTU com notável sucesso. Ela ficou no cargo até o fim de sua vida, em 1898, ou seja, ocupando a posição por 19 anos. Sob sua liderança, a WCTU se tornou a segunda maior organização feminina do mundo (Epstein, 1981). Outros autores dizem que foi a maior (WCTU, 2025). Willard, uma educadora, foi a primeira reitora de mulheres da Northwestern University, e foi considerada uma "notória feminista"(Epstein, 1981). Além das questões da temperança e do voto feminino, sob a sua liderança, a WCTU desfraldou bandeiras como a reforma prisional, os direitos trabalhistas - incluindo o dia de trabalho de oito horas e a proteção da infância das mulheres contra abusos. Ela cunhou o lema Do Everything, que incentivava as mulheres a se envolverem em todas as frentes de reforma social (7).
A WCTU alcançou tanto sucesso que Tyrrell (1986) relata que, pela virada do século, ou seja, logo após a morte de Willard, a organização possuía 168 mil mulheres afiliadas. Para comparação, o movimento pelo direito do voto feminino possuía em torno de 13 mil mulheres envolvidas.
Willard foi uma das primeiras mulheres a ganharem uma estátua no Capitólio (sede do Congresso Nacional dos EUA). O seu trabalho é considerado determinante para a aprovação, em 16/01/1919, da 18ª emenda constitucional americana, estabelecendo a famosa "Lei Seca".
Ellen White e a WCTU
Foi nesse período que White concedeu suas primeiras declarações favoráveis à união de forças dos membros adventistas, sobretudo as mulheres, com a WCTU.
Apesar da mudança de direção da WCTU logo nos primeiros anos, é possível observar, pela extensa e bem documentada bibliografia de White, que essa pioneira ainda mantinha a mesma postura de diálogo e cooperação em relação à WCTU ao longo de seu ministério. Em 1908 ela ainda aconselhava a Igreja a buscar a cooperação na missão de promover a abstinência do álcool e drogas entre a sociedade americana, de e promover a saúde como um estilo de vida.
Mais do que apenas não se manifestar contrariamente ou adotar uma postura neutra em relação à WCTU, White chegou a ponto de dizer que, em algumas questões, mulheres dessa organização estavam "muito à frente" dos líderes adventistas. White renovava recorrentemente seu apelo ao diálogo e ao caminho desimpedido para a pregação a essas mulheres, mas não em uma posição de absoluta superioridade em relação a elas. Em grande parte, White via as mulheres da WCTU como iguais, obreiras que serviam ombro a ombro em aspectos importantes da causa adventista:
Em certos assuntos, as obreiras da U.T.M.C. encontram-se muito adiante de nossos líderes. O Senhor tem nessa organização pessoas preciosas, que podem ser grande auxílio para nós nos esforços para promover o movimento de temperança. E a educação que nosso povo tem recebido na verdade bíblica e em certo conhecimento das reivindicações da lei de Jeová, habilitará nossas irmãs a comunicar a essas nobres defensoras da temperança o que será para seu bem espiritual. Formar-se-á, assim, uma união e simpatia onde, por vezes, existiu preconceito e desentendimento. (6)
Percebe-se, dessa declaração de White que, em sua época, havia algum nível de preconceito contra a WCTU e que, possivelmente, houvessem barreiras dificultadoras para a comunicação e a cooperação entre os adventistas e as mulheres desse movimento. White chegou a sugerir que a WCTU fosse convidada para reuniões campais adventistas com o objetivo de demonstrar boa vontade e diminuir a distância entre as duas organizações (6).
O apreço da Sra. White pela WCTU é reconhecido pelos depositários White ao adjetivarem a sua causa com a palavra "digna", sendo que, provavelmente, essa opinião derivou de uma leitura geral dos editores às declarações da pioneira. Conforme consta em nota na meditação matinal "Filhas de Deus", de autoria de White,
Ellen White apreciava de modo especial o trabalho da U.T.M.C. [WCTU]. Insistia na colaboração entre nossas obreiras e as dessa digna causa. Esse princípio de cooperação pode ser levado para outras áreas de trabalho humanitário (2, p. 98).
Amizade Entre as Sra. White e a Sra. Henry, Líder da WCTU
De acordo registros históricos, Ellen G. White, durante seu ministério na Austrália (1891-1900), manteve correspondência com S. M. I. Henry, uma das líderes da WCTU. É dito que elas foram grandes amigas, embora nunca tenham se encontrado pessoalmente(2). Alguns trechos das cartas que a Sra. White enviou à Sra. Henry estão disponíveis na forma de publicações, inclusive em língua portuguesa (ver, por exemplo, a obra "Filhas de Deus" [2]). Durante um período em que esteve internada na clínica adventista de Battle Creek, a Sra. Henry aceitou a mensagem Adventista e foi batizada.
A visão que White tinha em relação à Sra Henry era a de que esta fora uma verdadeira missionária, praticamente uma embaixadora da Igreja Adventista junto à WCTU. Fica subentendido, nas declarações de White, que ela via a WCTU como uma organização que defendia ao menos alguns pontos diferentes daqueles da IASD, mas justamente por esta não ter toda a "luz" que os adventistas possuíam (no sentido do conhecimento das mensagens bíblicas para o tempo do fim).
O tom de White na declaração que proferiu a respeito da morte da Sra. Henry, conforme disponível no primeiro volume de Manuscript Releases, era de conciliação e pregação amorosa e respeitosa a essas mulheres:
Há verdades vitais sobre as quais elas [as mulheres da WCTU] têm tido muito pouca luz. Elas devem ser tratadas com ternura, amor e respeito para com o seu bom trabalho. [...] Retenha sua condenação até que o nosso povo tenha feito tudo o que se pode fazer para alcançá-las, não pelos eruditos argumentos dos ministros, mas por intermédio de mulheres de influência que trabalham como a irmã Henry trabalhou. (3)
Ainda é necessário destacar que White, nesse excerto, dá algum tipo de método e direcionamento para o trabalho adventista na missão de pregar às mulheres da WCTU. Ela destaca o papel feminino nessa missão, sabedora de que os ministros, e aqui é claramente dedutível que seriam exclusivamente homens, dada a posição ministerial, seriam incapazes de fazer essa obra. Mais ainda, ela afirma que argumentos "eruditos" seriam igualmente incapazes de produzir conversões na WCTU. Porém, o trabalho fiel e abnegado, como o prestado pela sua amiga, a Sra. Henry, seriam o meio para essa finalidade.
Capítulos Finais da WCTU
A 18ª emenda da Constituição Americana foi responsável por estabelecer a Lei Seca, proibindo a fabricação, venda e transporte de bebidas alcoólicas no país. Essa emenda foi ratificada em 1919 e entrou em vigor em 1920, impulsionada, em boa parte, pelo trabalho da WCTU. Apesar da impopularidade da Lei Seca, a proibição da produção e comercialização de bebidas alcoólicas perdurou por mais de uma década nos Estados Unidos, em boa parte graças ao apoio de pessoas ligadas ao movimento da Temperança.
No entanto, o aumento do crime organizado, derivado da produção clandestina de álcool e do contrabando de bebidas de países vizinhos e, talvez principalmente, a diminuição da arrecadação fiscal justamente no período da grande crise econômica de 1929, fizeram com que essa emenda fosse derrubada pela 21ª emenda, em 1933.
A WCTU registrou muitas baixas de associados logo após a assinatura da 18ª emenda, possivelmente por haver sido atingida a sua maior meta, que era a legislação em favor da causa da temperança. Com a revogação da Lei Seca em 1933, a organização perdeu parte de sua força política, mas continuou atuando em causas sociais, como educação moral, direitos das mulheres, proteção da infância e combate ao tabagismo e às drogas.
Durante sua presidência (1879-1898), Frances Willard promoveu a "World's WCTU", que foi o movimento de expansão do movimento a outros países. Ao longo de sua história, a WCTU teve filiais na Nova Zelânida, Índia e Coreia do Sul.
Atualmente, a WCTU mantém seu trabalho por meio de capítulos locais e estaduais, promovendo campanhas educativas e defendendo a abstinência voluntária de álcool e outras substâncias. Seu lema original — For God and Home and Every Land — ainda guia suas ações.
A WCTU e o Feminismo
Sobre a associação ou a desassociação da WCTU com os movimentos feministas, Tyrrell (1986) afirma que a WCTU foi alvo de intenso debate e controvérsias, considerando esse movimento um dos objetos mais prolíficos para a reinterpretação histórica, dada a complexidade de sua gênese e suas motivações (5).
Se por um lado a WCTU liderou avanços significativos e inegáveis nos direitos das mulheres, o fato de ser, essencialmente, uma organização com forte base e racional cristão protestante a coloca em uma posição disputada na questão "a WCTU foi um movimento feminista?"
Não é o objetivo deste artigo explicar ou discutir sobre as origens e desenvolvimentos do movimento feminista contemporâneo. Mas é suficiente dizer que o movimento feminista é bastate diversificado e abrange uma multiplicidade de correntes, a exemplo dos feminismos liberal, radical, marxista/socialista, interseccional, negro, ecofeminismo e transfeminismo, dentre outros (8,9,10,11,12,13,14,15,16,17). O fato é que não é possível ensaiar conclusões terminantes sobre a associação da WCTU com o feminismo, sobretudo sob a concepção atual desse termo, sem incorrer em anacronismos.
Por outro lado, Meira (2017) afirma que o movimento feminista atual tem largamente negligenciado o papel da WCTU no avanço dessa causa, evidentemente pela forte orientação religiosa daquela organização. No entanto, destaca o papel que o cristianismo, em grande parte por meios da WCTU, desempenhou em considerável parcela das causas feministas:
As narrativas feministas atualmente têm creditado generosas partes do surgimento e do sucesso histórico dos movimentos femininos ao espiritualismo, ao marxismo, ao nativismo indígena, ao anarquismo, ao liberalismo, dentre outras correntes de pensamento, mas tem dado insuficiente destaque ao cristianismo ou retratado a herança cristã unilateralmente como uma das estruturas opressoras que precisam ser reformadas.
Trechos relevantes da história das mulheres (como o movimento de temperança do século XIX), organizações femininas extremamente influentes (como a Woman’s Christian Temperance Union), instituições pioneiras (como o Oberlin College) e personagens fascinantes têm sido subvalorizados pela historiografia feminista apenas por causa de sua ligação com o cristianismo (3).
Meira (2017) ainda destaca que, já no século XIX, havia líderes sufragistas e expoentes dos direitos das mulheres que não participavam do vínculo religioso que a WCTU fazia questão de sustentar. Essas mulheres já faziam uma espécie de denúncia quanto o aparelhamento das igrejas cristãs em favor da masculinidade, e sugeriam que as mulheres deveriam se afastar do cristianismo por esse e outros motivos. Isso é de especial atenção pelo fato de que a WCTU, e em especial a sua mais proeminente líder, Frances Willard, voluntariamente se mantiveram afastadas das ideias mais radicais do feminismo sem, contudo, ser possível negar qualquer tipo de classificação da WCTU como um movimento feminista.
Em que pese ser controverso expedir um veredicto final sobre a questão de a WCTU ser um movimento feminista, sobretudo sob a ótica atual, fica evidente que essa organização contribuiu extensamente para os objetivos feministas. Se por um lado o próprio feminismo radical voluntariamente oblitera o papel da WCTU no desenvolvimento do feminismo, mais recentemente autores feministas têm revisitado o papel histórico desse movimento e atribuído mais créditos às suas contribuições para a sua causa (Meira, 2017).
1Limites de Interpretação sobre a Relação de White e a WCTU
A WCTU era um movimento visto como progressista, que defendia também o voto das mulheres e considerava o sexo feminino “moralmente superior” (Epstein, 1981). É muito necessário destacar que White não apoiava a WCTU incondicionalmente. A autora se manifesava veementemente contra o envolvimento da Igreja Adventista em questões políticas, fosse em nível institucional, fosse em nível individual:
Os que ensinam a Bíblia em nossas igrejas e escolas, não se acham na liberdade de se unir aos que manifestam seus preconceitos a favor ou contra homens e medidas políticos, pois assim fazendo, incitam o espírito dos outros, levando cada um a defender suas ideias favoritas. Existem, entre os que professam crer na verdade presente, alguns que serão assim incitados a exprimir seus sentimentos e suas preferências políticas, de maneira que se introduzirá na igreja a divisão. [...]
[...] O Senhor quer que Seu povo enterre as questões políticas.(18)
Como é possível perceber, White não apenas se mantinha à parte de questões políticas, mas gerava um ideário contundente contra o envolvimento da Igreja com esse campo. Há de se considerar que a causa da temperança, sobretudo no intuito de produzirem-se leis que a apoiassem, seria potencialmente uma violação do próprio princípio que ela destacara à Igreja. No entanto, incorre-se em um problema comum nesse espectro que é o uso generalizável, transmutável e indistinto da palavra "política".
Ao passo que White deu instruções claras quanto à separação entre Igreja e política, também incentivou que os membros votassem (rememore-se que o voto não é obrigatório nos EUA) e votassem em pessoas "temperantes" - o máximo possível distantes do álcool e fumo. O próprio engajamento na causa da temperança pode ser visto como uma ação política. No entanto, é necessário entender o que White de fato recomendou em relação à política e, para isso, há de se considerar ao menos alguns dos principais contornos que esse termo assume na sociedade moderna.
De acordo com Dahl (1989), política é um processo de tomada de decisões coletivas e exercício do poder em uma sociedade, e envolveria a disputa por recursos, influência e autoridade. Essa visão, embora compreenda, também dista em certa medida do conceito aristotélico, que via a política também como a busca do bem comum (Aristóteles, 1991). Habermas (1997), por outro lado, vê a pluralidade da sociedade e reconhece a divergência entre seus diferentes segmentos, definindo a política como um espaço onde se busca negociar os respectivos interesses. Já Tilly (2004) define a política como uma ação coletiva organizada para influenciar decisões públicas, como movimentos sociais, protestos e campanhas, e Secchi (2013) vê a política como um conjunto de decisões e ações governamentais voltadas à resolução de problemas coletivos.
Diante de tão ampla definição do que significa política, ainda resta a conceituação de política partidária, que tem a ver com funcionamento de partidos, disputas eleitorais, elaboração de programas e plataformas e representação de interesses sociais (Bobbio, 1987). Ainda, disso se pode derivar o termo pejorativo politicagem que, de acordo com Dallari (2001), consiste na troca de favores, populismo vazio, manipulação de cargos e recursos e desvios de finalidade da ação política. Esse autor ainda vê a politicagem como a degradação da atividade política, que leva à perda de confiança nas instituições.
Pelo contexto, é possível perceber que o apoio de White às ações da WCTU não endossava o engajamento amplo e irrestrito de adventistas na política, o que renderia à pioneira um adjetivo de incoerência, consequentemente anulando o seu papel na simbologia adventista. Pode-se perceber que White desencorajava veementemente o envolvimento na política partidária, na politicagem, e nos conceitos de política que, atualmente, envolvem a disputa pelo poder secular.
Haja vista o alinhamento que a IASD atribui à Ellen G. White com os princípios da Bíblia Sagrada, uma fonte que auxiliaria na interpretação do posicionamento dela quanto à política seriam as declarações do próprio Cristo, às quais recorrentemente se referia. "Respondeu Jesus: O meu reino não é deste mundo; se o meu reino fosse deste mundo, pelejariam os meus servos, para que eu não fosse entregue aos judeus; mas agora o meu reino não é daqui. "(Bíblia Sagrada, João 18:36). E também: "Não será assim entre vós; mas todo aquele que quiser entre vós fazer-se grande seja vosso serviçal; E, qualquer que entre vós quiser ser o primeiro, seja vosso servo; Bem como o Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir, e para dar a sua vida em resgate de muitos." (Bíblia Sagrada, Mateus 20:26-28). As declarações de Cristo, registradas na Bíblia Sagrada, se posicionam diametralmente opostas ao exercício da política no seu espectro de luta pelo poder, disputa por recursos escassos e nos seus desdobramentos que se revelam na politicagem. Pode-se presumir que White tinha esses princípios muito claros em mente enquanto redigia seus conselhos à IASD.
No entanto, na visão de White, a cooperação que visa a coprodução do bem público, se mantiver-se alijada daqueles aspectos mais objetáveis, e alinhada aos objetivos da fé cristã, pode ser empreendida sem que se incorra em falta. As palavras "Dai a César o que é de César" (Bíblia Sagrada, Mateus 22:21) denotam que, como cidadão, o cristão pode e deve fazer o que lhe é exigido para promover a paz social. A declaração do apóstolo Paulo em Romanos 13:1-2 pode reforçar essa noção, a de que, a despeito de o cristão não ser deste mundo, ainda continua tendo direitos, deveres e obrigações na sociedade secular, sem que faça desta o seu objetivo principal.
Dessa forma, percebe-se que o incentivo de White à união com a WCTU não engloba elementos de política partidária, da prática da politicagem e da interferência mútua entre as esferas religiosa e estatal. Pelo contrário, uma análise minimamente aprofundada das suas declarações nesse sentido já revelaria que esse apoio deveria ocorrer exclusivamente no ponto de intersecção da promoção da saúde e da justiça social que dela decorre, pela temperança. E isso pelas vias legítimas e que não configurassem violência ou rebelião, em consonância com seus conselhos em relação aos sindicatos (Uniões Trabalhistas), conforme declarações que constam, por exemplo, no livro Eventos Finais (p. 116, 117, 142).
É necessário também destacar que, da mesma maneira, o favor de White à WCTU não deve ser amplamente aceito como um endosso incondicional às suas pautas, sendo necessário escrutínio pontual de cada caso com as declarações da pioneira para saber em que situações a convergência pode ser honestamente encontrada.
Conclusão
Ellen G. White, pioneira e a figura extracanônica mais relevante da Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD), apoiou recorrentemente ao longo de seu ministério a cooperação dessa Igreja com a causa da temperança defendida pela Women's Christian Temperance Union (WCTU). A pioneira teceu uma bela amizade à distância com uma das líderes desse movimento, que veio a batizar-se na IASD. A WCTU é considerada por muitos autores como uma das maiores organizações femininas de sua época, tendo sido peça-chave na elaboração de uma emenda constitucional que materializava a principal de suas reivindicações.
Apesar de sua forte ligação com a igreja cristã protestante americana, a WCTU é vista hoje como uma organização precursora e fortemente contributiva do feminismo, ainda que essa influência seja propositalmente ignorada pelos segmentos mais radicais dessa ideologia.
O apoio que White deu a essa organização tangeu a convergência entre a mensagem de saúde adventista com a causa da temperança. A WCTU via que, para obtenção de seus objetivos, deveria se posicionar marcada e proativamente na política americana.
A clara mensagem de White quanto à política era de afastamento completo e, portanto, deduz-se que a convergência com a WCTU deve ser analisada sob esta restrição. Contudo, o envolvimento social em torno do bem comum, naquilo que converge com os princípios Bíblicos e que pode, de certa forma, ser considerado uma forma de política, foi incentivado pela pioneira adventista. No entanto, o emprego de estrategemas, disputas por poder, defesa de partidos e figuras políticas fica claramente proscrito pela mesma autora, o que se pode, com bastante segurança, aplicar também às atuais disputas ideológicas.
A mensagem de White ainda mostrava uma especial preocupação em pregar às mulheres da WCTU as mensagens distintivas adventistas, a fim de alcançá-las para essa causa. O meio indicado pela pioneira para esse fim envolvia a atuação ativa de mulheres adventistas na WCTU, e não o trabalho de ministros - homens - eruditos, o que denota um princípio de identificação com os alvos do trabalho para a obtenção de melhores resultados.
O apoio de White à WCTU não deve ser entendido como um endosso incondicional dessa pioneira às pautas e métodos daquela organização. Por outro lado, o fato de que a figura mais influente da modernidade para o adventismo tenha apoiado um movimento não-adventista tão associado a causas sociais progressistas e pautas ligadas ao direito das mulheres, vista por muitos como feminista, sob a liderança de uma indisputada feminista, tem muito a contribuir para o atual momento de polarização político-ideológica na Igreja e no mundo.
Por um lado, o fato de que uma organização indissociavelmente cristã tenha sido uma das principais contribuidoras das pautas feministas deve apelar a uma postura de menor belicosidade dos movimentos progressistas cristãos e políticos em relação ao que é visto como conservadorismo religioso retrógrado. Por outro lado, esse mesmo fato, aliado a uma naturalidade serena de Ellen G. White na lida e convergência com uma organização tão engajada politicamente em torno de pautas progressistas deve, igualmente, arrefecer a animosidade e o caráter de expedição de anátemas contra o que é indiscriminadamente chamado hoje de liberalismo, progressismo cristão e marxismo cultural.
Pesquisas futuras podem ser proveitosas no que tange à análise mais aprofundada e extensiva da história e trabalho da WCTU, dos limites e diretrizes para a atuação da IASD e seus membros junto às esferas pública, social e política, e à derrubada de barreiras de preconceito entre os segmentos extremos de liberais e conservadores na membresia.
Por fim, resta o apelo do profeta Isaías: "Não chameis conjuração, a tudo quanto este povo chama conjuração; e não temais o que ele teme, nem tampouco vos assombreis." (Is 8:12).
REFERÊNCIAS
(1) Enciclopédia Britannica, disponível em: https://www.britannica.com/topic/Womans-Christian-Temperance-Union
(2) White, E. G. (2013). Filhas de Deus. Casa Publicadora Brasileira.
(3) Meira, V. (2017). Vox scripturae. Feminismo e as mulheres cristãs conservadoras: a história tornando possível o diálogo. https://doi.org/10.25188/FLT-VOXSCRIPT(EISSN2447-7443)VXXV.N2.P259-282.VM.
(4) White (????) Manuscript Releases 1:125.
(5) Tyrrell, I. (1986). Temperance, feminism, and the WCTU: new interpretations and new directions. Australasian journal of american studies.5(2), dec.1986.
(6) White (2013). Filhas de Deus. CPB. p. 99.
(7) History of WCTU - Frances Willard House Museum & Archives
(8) Hooks, B. (2000). Feminism is for everybody: Passionate politics. South End Press.
(9) Crenshaw, K. (1991). Mapping the margins: Intersectionality, identity politics, and violence against women of color. Stanford Law Review, 43(6), 1241–1299.
(10) Davis, A. (1981). Women, race & class. Vintage Books.
(11) Butler, J. (1990). Gender trouble: Feminism and the subversion of identity. Routledge.
(12) Beauvoir, S. de. (1949). Le deuxième sexe [O segundo sexo]. Gallimard.
(13) Federici, S. (2004). Caliban and the witch: Women, the body and primitive accumulation. Autonomedia.
(14) Gonzalez, L. (1988). Racismo e sexismo na cultura brasileira. In Lélia Gonzalez: Por um feminismo afro-latino-americano (org. Flávia Rios & Márcia Lima, 2020). Zahar.
(15) Carneiro, S. (2003). Enegrecer o feminismo: A situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. Geledés Instituto da Mulher Negra.
(16) Stanford Encyclopedia of Philosophy. (2022). Feminist philosophy.
(17) ONU Mulheres. (2023). Interseccionalidade e igualdade de gênero.
Tilly, C. (2004). Social movements, 1768–2004. Paradigm Publishers
Habermas, J. (1997). Direito e democracia: Entre facticidade e validade (Vol. 1). Tempo Brasileiro
Bobbio, N. (1987). Estado, governo, sociedade: Para uma teoria geral da política. Paz e Terra
Aristóteles. (1991). A política (M. da Gama Kury, Trad.). Brasília: Edutora Universidade de Brasília (obra original escrita no século IV a.C.)
Dahl, R. A. (1989). Democracy and its critics. Yale University Press
Nenhum comentário:
Postar um comentário